Anorexia Nervosa

Diferentes nomes para uma mesma doença?

(T) Cybelle Weinberg (I) Marina Kanzian (D) 01.09.2015

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As primeiras descrições da anorexia nervosa, tal qual a conhecemos hoje, datam do século XVII. Em 1691 Richard Morton, médico inglês, publicou a obra Tisiologia Sobre a Doença da Consunção, em que aparece a primeira descrição de quadros que se assemelham à anorexia nervosa contemporânea.

A consunção, ou atrofia nervosa, é um definhamento progressivo, caracterizado por três sintomas principais: perda do apetite, amenorréia e emagrecimento importante. A perplexidade de Morton, quando obrigado a lidar com uma paciente que parecia ter escolhido o jejum e que recusava ajuda, abriu espaço para a consideração das bases emocionais do transtorno alimentar.

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Até as publicações de William Gull, em 1868, a privação de comida estava associada à doença mental ou a doenças orgânicas como tuberculose, diabetes e câncer. A partir dele a anorexia passou a ser vista como uma patologia independente, cujo diagnóstico implicava em uma alteração mental enraizada no sistema nervoso, exacerbada pela idade da paciente e seu modo de vida. Inicialmente Gull chamou de “apepsia hysteric” esse quadro, mudando para anorexia nervosa quando ele se convenceu de que a “anorexia” (falta de apetite) era um termo melhor do que “apepsia” (indigestão). Isso porque, exceto nos últimos estágios da doença, o alimento podia ser bem digerido.

Para Gull o diagnóstico de anorexia nervosa baseava-se na severa emaciação, na depressão do pulso e da respiração e baixa temperatura do corpo. A suspensão da menstruação também seria um sinal da diminuição geral das funções vitais.

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Em 1873 Charles Lasègue faz um relato detalhado de oito casos de mulheres anoréxicas, descrevendo três etapas dessa patologia. Na primeira etapa, a paciente começaria diminuindo sua alimentação e suprimindo sucessivamente a carne, o pão e certos legumes, sem dar sinais de cansaço ou enfraquecimento. Na segunda etapa a recusa alimentar é fortalecida – apesar dos esforços do médico, da família e dos amigos -, justificando o nome de anorexia histérica ao quadro. No terceiro estágio, as menstruações deixam de ocorrer, a constipação não responde aos purgativos, a pele resseca, aumenta a fraqueza, ocorrem vertigens.

Diante da aflição dos familiares, a paciente começa a inquietar-se e pode vir a aceitar o tratamento, mas nem sempre isso ocorre.

No final do século XIX, médicos ingleses e americanos se depararam com uma estranha enfermidade entre meninas adolescentes. Essa doença, que desapareceu por completo dos registros médicos por volta da terceira década do século XX, ficou conhecida como clorose, ou “doença verde”.

Seu diagnóstico baseava-se na extrema palidez, fraqueza, cansaço, irritabilidade, constipação, irregularidade menstrual ou amenorréia. O apetite reduzia-se, levando por vezes a um pronunciado emagrecimento. Certos alimentos passavam a ser evitados, especialmente as carnes vermelhas.

As “cloróticas” eram descritas como meninas lânguidas e em permanente estado de abandono, desvanecendo-se por qualquer coisa e chorando por motivos insignificantes. Pesquisadores de documentos médicos da época acreditam que a clorose e a anorexia nervosa seriam condições análogas de um mesmo quadro psicopatológico.

No entanto alguns autores, diante do aumento da incidência da anorexia nervosa nas últimas décadas, passaram a questionar se a anorexia descrita no passado e a anorexia nervosa da atualidade seriam realmente a mesma doença. Hilde Bruch, psiquiatra e psicanalista que desenvolveu suas pesquisas nos Estados Unidos, muito contribuiu para a compreensão da anorexia nervosa com a introdução de uma característica fundamental da doença, a “busca incessante da magreza”, e a distorção da imagem corporal, mencionada por ela pela primeira vez em 1962.

Outro pesquisador importante, Gerald Russell, afirma que ocorreram alterações significativas em relação à psicopatologia da doença e mudanças na sua forma, especialmente com a emergência da bulimia nervosa, quadro descrito por ele em 1979. Para Russell, o sinal de que houve uma mudança na natureza da psicopatologia central da anorexia nervosa evidencia-se pela preocupação mórbida da anoréxica com seu peso e seu horror a engordar. Russell considera curioso que as observações sobre a distorção da imagem corporal tenham sido feitas apenas nas últimas décadas e se surpreende com o fato de que gerações de médicos capazes não tenham notado características perfeitamente claras da psicopatologia, sendo mais provável que a própria anorexia nervosa tenha mudado em suas manifestações através dos anos.

Ocupando uma posição conciliatória, Vincenzo Di Nicola, em 1990, cunhou a expressão “anorexia nervosa multiforme” para descrever uma ampla variedade de formas de jejum autoimposto através da história que, por aparecer em diferentes épocas e lugares, pode ser chamada de “camaleão cultural”.

Nossa conclusão é a de que, tal como um quadro que não muda mesmo quando se troca a moldura, a anorexia descrita no passado é a mesma do presente, encontrando na cultura diferentes formas de expressão.

Saiba mais
BRUCH, H. Eating Disorders: Obesity, Anorexia Nervosa, and the Person Within. New York: Basic Books, 1973.
RUSSELL, G. F. M.; TREASURE, J. (1989) The Modern History of Anorexia Nervosa. An Interpretation of Why the Illness has Changed. In: The Psychobiology of Human Eating Disorders: Preclinical and Clinical Perspectives. Vol. 575 of the Annals of the New York Academy of Sciences, 13-29.
WEINBERG, C.; CORDÁS, T. A. Do altar às passarelas. Da Anorexia Santa à Anorexia Nervosa. São Paulo: Annablume; 2006.

Cybelle Weinberg

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Formada em Filosofia pela PUC-SP, psicanalista pelo Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, Mestre em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP e Doutoranda em Psicologia Clínica pela PUCSP. Coordeno a Clínica de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e Bulimia (CEPPAN) e sou Coordenadora geral da Casa Viva Clínica de Tratamento dos Transtornos Alimentares. Sou autora dos livros: Geração Delivery – adolescer no mundo atual. (org.) São Paulo: Sá Editora, 2001. / Do altar às passarelas – da Anorexia santa à Anorexia Nervosa. (Weinberg e Cordás) São Paulo: Annablume, 2006. / Por que estou assim? – os momentos difíceis da adolescência. São Paulo: Sá Editora, 2007. / Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência. Uma visão multidisciplinar (org.) São Paulo: Sá Editora, 2008. / Psicanálise de Transtornos Alimentares (Weinberg e Gonzaga, org.) São Paulo: Primavera Editorial, 2010.

Marina Kanzian

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Me formei em Design pela FAU USP em 2011, onde descobri que o que curto se chama ilustração. Já ilustrei revistas e campanhas, mas sempre ganhei a vida fazendo design gráfico. Atualmente moro na Alemanha, onde estou em busca de novas experiências.

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