Arquivo da categoria: Sem categoria

Hipocondria

A hipocondria e a linguagem dos órgãos

Hypochondria and the language of the organs

Aline Camargo Gurfinkel

nietzsche

Resenha de M. Aisenstein, A. Fine e G. Pragier (orgs.), Hipocondria, São Paulo, Escuta, 2002, 201 p.

O corpo, no mundo contemporâneo, tem se tornado cada vez mais um enigma que exige ser decifrado.

Ele se faz presente em diferentes esferas da vida cotidiana, tais como na alimentação, na atividade física e nas relações com o outro, e tem estado cada vez mais em evidência em nossa clínica, produzindo ruídos, sil êncios excessivos ou sintomas de diversas ordens.

A produção psicanalítica, que investiga o modo de vida contemporâneo e seus efeitos na clínica e, sobretudo, no corpo, tem sido vasta e profícua. O estudo da hipocondria tamb ém nos fornece importantes elementos para trabalhar o sujeito e seu corpo: um sujeito que está instalado num corpo, que antes de mais nada é corpo. Estamos aqui lidando com o conceito que Freud, em O ego e o Id, denominou de ego corporal. A hipocondria, tamb ém conhecida na antigüidade como a “sombria melancolia”, faz o corpo falar uma linguagem que nos convida a adentrar um outro universo: o da linguagem do órgão.

A coletânea que apresentamos constitui uma refer ência muito importante sobre o tema. Trata-se da tradução dos trabalhos publicados na L’ hypocondrie, Monographies de la Revue Française de Psychanalyse, (1995) acrescida do texto de Maria Helena Fernandes, “A hipocondria do sonho e o silêncio dos órgãos: o corpo na clínica psicanalítica ”. O ano de 2002 mostrou-se fértil em importantes publica- ções sobre o assunto, já que nele também foi publicado o livro Hipocondria, da coleção clínica psicanalítica [1], escrito por Rubens Volich; um texto claro e envolvente, que nos conduz a uma viagem no tempo e na história desta patologia. Mas se por um lado o livro de Volich apresenta uma preocupa ção didática e introduz o leitor no tema ao apresentar a bibliograÞ a a ele referente, no livro que ora resenhamos o espírito é outro: trata-se de uma soÞ sticada teorização que pressupõe um bom conhecimento prévio dos conceitos ligados à constituição do sujeito nos diferentes desenvolvimentos pós-freudianos. São livros que se complementam e constituem uma referência necessária ao leitor interessado no tema, que encontrará neles um excelente material de pesquisa.

Hipocondria começa dando lugar privilegiado à hist ória ao apresentar o artigo de Angelo Hesnard. Trata-se de uma comunicação apresentada à Sociedade Francesa de Psicanálise, em 1931, e publicada na Revue Française de Psychanalyse na mesma época. Um prefácio acompanha o texto e situa-o num interessante contexto geopolítico, dando elementos para compreender a complexidade das relações do movimento psicanalítico internacional. Hesnard teve um importante papel na difícil penetração da Psicanálise na França. Em seu artigo, ele apresenta dois casos clínicos e distingue dois tipos de estados hipocondríacos: os que evoluem nas neuroses e os que evoluem nas psicoses. Acompanhando o pensamento de Freud e de Jones, o autor ressalta o papel da angústia hipocondríaca. Nos casos clí- nicos, especialmente no segundo que apresenta, ele revela dados importantes sobre a contratransferência, embora ele próprio não tenha podido elaborá-la suÞ cientemente em seu trabalho clínico.

O texto de Colette Guedeney e Catherine Weinsbrot traz importantes elementos de análise sobre o corpo na Psicanálise e na cultura contempor ânea, bem como sobre a instigante relação médicopaciente e analista-analisante. Na hipocondria, esta última assume características muito peculiares de ordem subversiva, análoga àquela da histérica com o médico e seu saber.

As autoras retomam a sinuosa história da medicina, e mostram como os grandes avanços, no estudo da hipocondria, foram sempre representados por uma certa volta às origens e ao pensamento médico da antigüidade.

Em 1860, por exemplo, podemos encontrar uma curiosa definição de hipocondria que mantém sua atualidade: “tipo de doença nervosa que, perturbando a inteligência dos doentes, faz-lhes crer que estão sendo atacados pelas mais diversas doenças, de modo que passam por doentes imaginários, sofrendo muito, e que estão mergulhados em uma tristeza habitual” (p. 31). Em 1781, outra deÞ nição interessante coloca o hipocondr íaco como angustiado com sua saúde, termo usado para sujeitos “extravagantes” e de “humor sombrio”.

Nos escritos hipocráticos e galênicos – conforme relatam as autoras – a hipocondria se encontra ligada à melancolia próxima da neurastenia, da histeria e dos delírios, e – associada ao lado obscuro da depress ão. Já no século IV a C. a hipocondria foi isolada como doença cuja responsabilidade era atribuída à “bílis negra”, ao “humor negro” da doutrina dos Quatro Humores. Surpreendentemente, a tradição humoral vai se manter ao longo da história através das met áforas ligadas à hipocondria, e permanecerão, de um certo modo, no próprio discurso neurobiol ógico do séc. XXI.

Na antigüidade, o doente se colocava entre os médicos e os Þ lósofos, que se uniam para aliviar o sofrimento do paciente, para que ele encontrasse a alegria de viver (eutimia). A Þ losoÞ a era quem libertava o homem das paixões. Não havia uma psiquiatria antiga, pois a dor física e a dor psíquica encontravam- se no mesmo plano. Para Hipócrates, no centro da hipocondria estão a tristeza e o temor duráveis. Outra idéia associada à hipocondria é a de que sua etiologia seria devida a uma espinha cravada nas vísceras! Já para Diócles de Caristo, o primeiro a deÞ nir a hipocondria, no séc. IV a C., a hipocondria seria como uma gastrite. Ora, como sintetizam Guedeney e Weisbrot, “a queixa hipocondríaca é justamente a da sombria melancolia, deste mal-estar que tanto fez sonhar e inspirou todo um imaginário não apenas médico ou Þ losóÞ – co, mas ainda poético, literário ou artístico, a ponto de fazer dela, além de uma doença ou uma disposição da alma, o temperamento dos homens excepcionais. Ela é distimia, náusea existencial, portanto, contrária à eutimia na qual a alma e o corpo estão em paz e harmonia” (p. 35).

A aproximação entre hipocondria e doença digestiva me parece bastante interessante, e nos remete ao tema dos transtornos alimentares. Tanto nestes últimos quanto na hipocondria estamos diante de patologias com um caráter transnosográÞ co, e em ambos observamos igualmente perturba ções da imagem corporal [2]. É curioso lembrar ainda que alguns casos da anorexia por vezes evoluem para um quadro de hipocondria, como apontou Jeammet [3].

Um desdobramento do aspecto digestivo no tratamento da hipocondria na antig üidade era a recomendação de evitar alimentos pesados e indigestos, além de “tratamentos para a alma”, como a reß exão, a música e a amizade. Um critério para diferenciar a hipocondria da melancolia, apontado pelas autoras, é o seguinte: será hipocondria quando “os sintomas digestivos ocupam a boca da cena e de melancolia quando os dist úrbios psíquicos, a dor moral são predominantes” (p. 36).

Segue a história com a separação radical entre o corpo e o espírito. No século XXI, com a hiperespecialização da medicina, haverá uma valoriza ção dos órgãos e das lesões que estimulam o hipocondríaco a falar destes em vez de falar do corpo. Exemplo preciso de como a cultura atravessa nossa relação com o corpo.

Após este interessante capítulo histórico, encontramos o texto de Fine: um ensaio de revisão dedicado mais às “hipocondrias pesadas, maciças e crônicas”. Do que se trata a hipocondria, interroga- se Fine. Podemos falar em fenômeno, já que nela há uma articulação entre Psique e Soma? Parece tratar-se de um drama com dois personagens, ou do encontro entre uma sensa ção, uma dinâmica individual e um discurso. “Quer se trate de abordagens médicas, psiquiátricas ou psicanalíticas, nenhuma delas é consensual, e a polissemia induzida deste termo não permite sua entrada em um quadro nosográÞ co especíÞ co” (p. 59).

Fine repassa as hipóteses freudianas, salientando o fato de Freud nunca ter se dedicado mais detidamente à hipocondria. Descreve um primeiro tempo da teorização freudiana no qual a hipocondria é aproximada à neurose atual, em um segundo, no qual é associada à parafrenia e à paranóia. Fine retoma também os trabalhos de vários autores contemporâneos de Freud, como Tausk, com o complexo do corpo materno, e Ferenczi, com as patoneuroses. Em seguida, dedica-se aos autores pós-freudianos que seguiram a abordagem de Klein. Aqui a ênfase recai sobre os dois esquemas da teorização da pulsão de morte: a projeção do sadismo sobre os objetos externos seguida da introjeção desses objetos, que passam, então, a atacantes internos, e do modelo da pulsão de morte surgido em 1948. A hipocondria estaria ligada ao jogo das posições esquizoparanóides e depressivas, que está assentado na inveja e na recusa da frustra ção. A tradição kleiniana tem enfatizado, ainda, que os sintomas hipocondríacos aparecem nas crianças precocemente. Sobre este aspecto, lembro-me de uma interessante observação de Winnicott sobre as manifesta ções hipocondríacas nas crianças: “provavelmente, consigo uma visão especialmente clara deste problema [hipocondria] em um departamento ambulatorial infantil porque um tal departamento é, na verdade, uma clínica para tratamentos da hipocondria em mães. Não há uma linha divisória nítida entre a hipocondria franca de uma mulher deprimida e a preocupação genuína de uma mãe por seu filho” [4]. Temos aqui um interessante campo de pesquisa: aquele compreendido pelo entrelaçamento dos sintomas no corpo do Þ lho com uma tendência hipocondr íaca da mãe, derivada de sua própria depressão.

Temos, em seguida, o trabalho de Pragier, um dos autores centrais do livro. Nele, encontramos a seguinte fala de um paciente: “É aí que isso acontece… sempre, sempre… é apertado, incha, causa dor… tudo explodiu no interior, o est ômago, o coração, não como, quero dormir… sempre, sempre… ” encolhe-se sobre a cadeira e, mostrando a barriga, modula sua melopéia: “É aí que isso acontece… sempre, sempre…” (p. 86-87). Eis um belo retrato da fala hipocondr íaca, da relação do sujeito com sua angústia.

Pragier nos diz que compreender os hipocondríacos não é fácil. São pacientes que raramente chegam ao analista, já que buscam preferencialmente o médico, e a gravidade dos sintomas vai da angústia hipocondríaca à convic ção e ao delírio. Nos raros trabalhos publicados sobre o tema, o analista vê-se frente à travessia de grandes diÞ culdades teóricas. Aqui podemos evocar as imagens do Þ lme Viagem fantástica, no qual as personagens, como viajantes espaciais, adentram um universo estranho chamado corpo humano, e enfrentam múltiplas e perigosas aventuras. Assim, trabalhar com o tema da hipocondria transporta-nos, tal como no Þ lme, a um universo no qual não há limites entre o fora e o dentro: o objeto, tão fundamental para o sujeito, é negado, e a alucinação aparece no negativo.

Pragier nos lembra que já está claro que o hipocondríaco identiÞ ca o órgão doente com o objeto mau, cuja perda recusa. Desse modo, a questão que se coloca agora é segundo qual mecanismo esta transforma- ção opera. Ora, esta é uma patologia que coloca, de saída, a questão dos limites do eu. Para o esclarecimento desta questão, ele evoca André Green: “conÞ rmando a import ância do objeto como função enquadrante da estruturação psíquica, o desinvestimento das representações de coisas e do inconsciente na hipocondria produz uma regressão narcísica despsiquizante.” (p. 83-4). A clínica da hipocondria contribui com importantes elementos para se pensar os processos que regem as ß utua ções dos limites entre o fora e o dentro do sujeito.

Pragier destaca ainda a necessidade de se trabalhar com a hipocondria em suas relações com outras patologias, tais como a histeria, a melancolia, a paranóia e a somatização. É preciso compreender a especiÞ cidade do investimento do corpo dolorido, que assume o lugar do objeto. O auto-erotismo ganha um lugar central e diferente de suas características habituais e de seu caráter ativo, já que o investimento das zonas eró- genas “parece se esfumaçar ao mesmo tempo que o objeto; a regressão faz com que o paciente volte ao período de indistinção eu-objeto.” (p. 84). Trata-se de um auto-erotismo muito arcaico, que investe globalmente o corpo em suas funções vitais mais autônomas que são mais independentes do objeto libidinal.

Ainda com este autor, vemos que a hipocondria consiste na falha da continuidade muda do corpo, que não é um vazio, mas uma “percepção contínua de impressões reasseguradoras ”, um fundo sobre o qual “se efetua normalmente o trabalho psíquico” (p. 85). Esta falha perturba uma boa identiÞ cação primária. Excesso ou falta nos cuidados maternos e a má qualidade da pára-excitação engendram a mesma fragilidade, que trará repercussões no sentimento do corpo. O objeto está lá desde o início, e suas falhas tornar-se-ão presentes em toda patologia na qual apare- çam alterações da percepção do corpo. “A representação da ausência de representação atingiria a percepção contínua de impressões tranquilizadoras que, como vimos, funda o silêncio do corpo. Haveria alucina ção negativa da representa ção – muda – de um corpo que funciona bem. É na falta deixada por esta ausência que se desenvolve a hipersensibilidade aos movimentos internos do corpo, e a interpretação pejorativa destes (…) O objeto perdido não é introjetado no eu, como na melancolia, mas recusado pela alucinação negativa, enquanto o corpo vem ocupar o lugar deixado vago.” (p. 102)

A recusa da perda do objeto afeta as capacidades do eu, de modo que este fracassa ao tornar psíquicas as sensações somáticas. Por outro lado, o sintoma hipocondr íaco evita a despersonaliza ção ao estabelecer uma representação psíquica destas excitações: a lesão de um órg ão ou uma doença grave. “O órgão hipocondríaco é, assim, recrutado pelo eu na express ão deslocada do sofrimento que limita a desorganização.” (p. 86).

Em uma perspectiva econ ômica estrita, Þ ca difícil diferenciar as diversas soluções somáticas: conversão, doença orgânica e hipocondria. A distin ção com relação à histeria, que hoje freqüentemente se expressa pelo sintoma da dor, pode ser difícil a princípio; não é o caráter próprio deste sintoma que possibilita o diagnóstico diferencial, mas a angústia, a vigilância intensa e o funcionamento do eu. Na hipocondria, “o órgão emite uma mensagem de sofrimento sem alcance simbólico.” (p. 86).

Como sabemos, a hipocondria é a terceira neurose atual proposta por Freud. O trabalho de M. Aisenstein parte desta premissa, e nos lembra que existe um núcleo hipocondr íaco em todas as organiza ções psicopatológicas. No seu texto sobre o narcisismo, Freud descreve a angústia hipocondr íaca como o protótipo da angústia narcísica. Assimila, assim, a tensão da excita ção do órgão doloroso ao órgão sexual. “Ele supõe a extens ão desta “erogeneidade” para o corpo inteiro que, pelo viés da dor hipocondríaca, adquire assim uma qualidade erógena correlata à distribui- ção das quantidades de libido do eu.” (p. 104).

Aisenstein nos lembra que a dor tem um papel predominante na construção da representação psíquica e que, portanto, o masoquismo tem um papel central no trabalho de representação. “O masoquismo primário permite, com efeito, um investimento do desprazer relativo à doença e à alucinação, investimento suÞ ciente para permitir a passagem do princípio de prazer ao de realidade. Ora, na hipocondria, a angústia hipocondr íaca pode ser pensada como investimento insuÞ ciente do desprazer. Haveria, então, impedimento de investir o tempo de espera, advindo daí um superinvestimento da dor em uma dimensão a-histórica” (p. 104-5). A dor não suscitaria um recurso sadomasoquista e nem um pensamento mágico, e a hipocondria seria vista como alerta de um perigo na esfera narcísica. Um investimento mínimo é correlato, pois, de um investimento pelo objeto (essencialmente a mãe) do desprazer e da tensão dolorosa, no momento das primeiras experiências de satisfação. Como um investimento de tipo hipocondríaco pela mãe, que a autora propõe como “análogo ao aumento hipocondríaco do sonho de que fala Freud, em 1917, quando evoca as capacidades diagnósticas do sonho.” (p. 106)

O texto de Aisenstein faz par com o de Gibeault, pois ambos enfocam o masoquismo primário. Este autor começa por indagar se a hipocondria não seria um estado psíquico temporário, que pode aparecer nas neuroses, nas psicoses, em certos momentos da análise e em certos momentos do desenvolvimento (como a adolescência, a crise de meiaidade e a senescência). Para ele, a angústia hipocondríaca é correlata às questões que se referem à bissexualidade psíquica. Nos dois sexos tratar-se-ia de integrar a passividade, que Freud propõe como feminina. A hipocondria seria uma defesa contra o terror do que está escondido: o continente negro. Gibeault contribui, assim, com alguns elementos signiÞ cativos para o estudo das relações entre masoquismo e feminilidade.

Tal como Aisenstein, Gibeault entende a hipocondria como sinal de alarme de um perigo na esfera narcísica; ela indica um estado de alerta relativo ao investimento narcí- sico do próprio corpo. Gibeault lembra Merleau-Ponty ao colocar que a auto-observação hipocondríaca do corpo enraiza- se numa “quase-reflex ão” deste, que mantém uma distância entre o corpo que sente e o corpo sensível. “Se este trabalho da hipocondria manifesta-se nas expressões patológicas próximas da psicose, pode igualmente mostrar a importância de um superinvestimento necessário do corpo na psique para que seja possível o reconhecimento da alteridade do objeto em seu corpo sexuado “ (p. 127).

O artigo de Fédida ocupa neste livro uma posição central. Começando por sua linguagem, já bem conhecida, que convida a entrar num mundo fantástico como o do filme evocado no início da resenha. No entanto, o fant ástico aqui nos lembra mais aquele do universo de Gabriel García Márquez. Fédida retoma as colocações de Ferenczi bem como alguns aspectos de sua biograÞ a, para situar o fantástico de suas criações teóricas. Assim Fédida apresenta as idéias de Ferenczi, em Thalassa, a respeito de um falso self deÞ nido como um si intragemelar deformado. “É em Princípio de relaxamento e neocatarse que Ferenczi compara ‘o psiquismo do neurótico a uma má-formação, um tipo de teratoma, poder-se-ia dizer.’ As ‘parcelas de gêmeos’ partenogen éticos alojadas pelo tumor são, com efeito, tecidos de si.” (p. 130). Se o bisturi do cirurgião indica que deva ser extirpado, o bom senso indica que isso pode ser uma ameaça à pessoa inteira.

Fédida frisa o grande alcance metafórico das coloca ções de Ferenczi. Fala da submissão deste a Freud, relacionando Þ gurativamente sua transferência não resolvida com a doença e a morte por anemia. “Será a identiÞ cação com a potência superior, em uma transferência que é poupada da agressividade, o meio de ‘apoio’ necessário para se preservar da ‘decomposição’?” (p. 132). Fédida entende que não há reß exão psicanalítica sobre o lugar da hipocondria sem levar em conta o recolhimento na carne do aporte de Ferenczi. Um dos elementos do pensamento de Ferenzci é o das falhas na relação da mãe com o bebê no período das trocas vitais, que se relaciona com lacunas no auto-erotismo. Nestes casos, observamos uma obsessionalização depressiva das angústias maternas, que leva ao investimento estésico das “funções” corporais pelo pensamento. “O hipocondríaco é um teórico do órgão psíquico de pensamento a serviço de uma justiÞ cação da auto-conservação. Como se fosse pressentida a ameaça que representaria o psíquico como força de desorganização do corpo.” (p. 134).

A hipocondria, como a neurose obsessiva, a anorexia e a toxicomania, são patologias que testemunham a sobreposição do auto-erotismo à auto-conservação. Vemos aqui uma nova relação entre a hipocondria e os transtornos alimentares, particularmente a anorexia. Isto se veriÞ ca na reconstrução das relações da criança com a mãe cujo corpo está como um intruso, presente demais. Mães com depressividade obsessiva, por exemplo, levam – freqüentemente o menino – a uma fonte de erotização negativa do pró- prio corpo, impedindo o autoerotismo. Na transferência, tal fenômeno aparece como uma exigência do paciente de que o corpo do analista seja um espelho receptivo de todos os reß exos de sua queixa.

O hipocondríaco apresenta uma grave perturbação na relação especular com outro. Isto se reß ete numa transfer ência que demanda e se dirige, freqüentemente sob a forma homossexual, ao corpo do médico, pois é ele que é o portador da esperança de receber a angústia de decomposi ção e de refletir a integridade do órgão. Com duas passagens clínicas ele ilustra de modo muito claro o lugar do corpo na transferência. Muito rico por sua originalidade, este é um artigo indispensável para o estudo da hipocondria.

O artigo de Marie-Rose Moro pode ser compreendido como um trabalho de etnopsican álise. Trata-se de uma concepção que aproxima a Psicanálise e a Antropologia, centrada no atendimento de pacientes de outras línguas e culturas, para os quais o sintoma recai na perda do referencial cultural que exp õe o sujeito a um profundo desamparo. A partir de um caso clínico, a autora ilustra a técnica e a abordagem do sintoma hipocondríaco nesse contexto. Não se trata de um dispositivo especíÞ co, mas de um setting psicoterápico complexo e mestiçado que permite o descentramento cultural dos terapeutas e a considera- ção da alteridade cultural dos pacientes migrantes. A língua e os elementos da cultura do sujeito passam de obstáculos a elementos do quadro terap êutico e fonte de criação para terapeutas e paciente. O trabalho é realizado com um grupo de terapeutas, baseado no complementarismo de Devereux e na técnica proposta por Nathan. No caso clínico apresentado, o paciente recompõe sua história e seus vínculos e, na volta à sua terra de origem, pode evitar viver um novo traumatismo, fato comum nestas situações.

Para encerrar nossa “viagem fantástica”, nos dirigimos ao artigo de Maria Helena Fernandes, que aborda a capacidade diagnóstica do sonho e que trata do que chama de “psicopatologia do corpo na vida cotidiana”. A autora se pergunta se “escutar” um sujeito é só ouvir sem ver, e comenta que existem situações clínicas nas quais perceber o corpo do outro é fundamental. “O ‘escutar-ver’ é ainda mais necessário quando nos deparamos com as palavras que, muitas vezes, pouco ou nada conseguem dizer além de evocar imagens confusas de um cenário freqüentemente violento.” (p. 176).

Em certos pacientes há uma espécie de “silêncio dos órgãos”. Fernandes toma esta expressão com um sentido diferente do que vimos anteriormente em Pragier. Ela se refere ao silêncio como mudez, como impossibilidade de se expressar, “uma espécie de sono do corpo, porém um sono sem sonho” (p. 186). Neste silêncio dos órgãos, aparece uma ausência de percepção do indício somático mórbido; nessas situações a experiência do corpo se assenta mais no registro da necessidade, anterior ao auto-erotismo, indicando uma falência da erogeneidade e do registro do prazer, da percepção e da dor. Assim, vê-se a grande import ância da erogeneidade para a percepção. Existem outros casos, porém, como ressalta Fernandes, em que a recusa dos sinais dos processos mórbidos está mais ligada a um processo defensivo. Aqui se trata do mecanismo de recusa da realidade, fenômeno que tem relação com o fetichismo e a psicose. A recusa, muito estudada pelos analistas nas patologias psíquicas, pouco foi analisada no campo das doenças somáticas, embora se encontre subjacente a elas mais freqüentemente.

Fernandes propõe reß etirmos sobre a maneira como os investimentos libidinais se organizam no interior da situa ção analítica, na qual “o corpo de ambos é solicitado a dar ouvidos àquilo que a palavra não tem condições de expressar” (p. 190). A autora lembra Fédida ao apontar que o corpo do analista é o cená- rio onde atuam os fantasmas do paciente, de acordo com a economia primitiva da troca com o corpo dos pais. “O contato com os pacientes somáticos rapidamente ensina que a expressão verbal e metafórica freqüentemente utiliza o corpo como imagem, solicitando do analista um olhar e uma escuta capazes de Þ gurar essa imagem e descrevê-la em palavra. ” (p. 190).

Encontramos neste livro, portanto, um precioso material de pesquisa sobre o corpo, num resgate de importantes elos históricos, seja da história da medicina, seja da história deste no campo da Psicanálise, no qual aparecem diferentes rumos da teorização pósfreudiana para esta questão. O livro exige do leitor um trabalho sobre os textos, alguns dos quais não dispensam uma segunda leitura. O estudo da hipocondria traz importantes elementos de escuta para o analista, diante das novas demandas clínicas que incidem tão diretamente sobre o corpo. Seguindo as indicações de Fernandes, faz-se necessário, em certas situações, uma disposi ção para o “escutar-ver”: um analista sensível às sutis vibrações do corpo, e aberto para uma ampliÞ cação hipocondr íaca de sua percepção do outro. Trata-se de desenvolver a capacidade de ouvir a angústia hipocondríaca que se faz presente nas diferentes apresentações clínicas de nossos pacientes, e particularmente nos momentos em que a dor aciona esta angústia para a preservação do eu.

Nietzche uma biografia

cropped-megan-kardell-blue-orbit.jpg

 

ANDARILHO ENIGMÁTICO EM BUSCA DA LUZ EXATA
Com rigor, fluência e contextualização perfeita, discreta empatia e senso de humor, Daniel Halévy compõe uma envolvente biografia de Friedrich Nietzche, o santo ateu.
(“Sim, sei de onde venho/ lnsaciável como a chama/ Brilho e me devoro/ Luz, tudo que toco/ Carvão, tudo que deixo”…Ecce Homo).

Eis o homem que morreu duas vezes, como fogo e como brasa, depois de ter percorrido em estado de incandescência a longa travessia que leva das últimas ilusões da era da razão até a terra arrasada do século XX.

Para responder a essa pergunta não menos insaciável – afinal de contas, quem foi Friedrich Wilhelm Nietzsche – Daniel Halévy refaz a rota desde o berço até sua primeira morte, ocorrida em Turim, janeiro de 1889.

É lá que Overbeck, protótipo do amigo fiel — e para quem o homem Nietzsche é infinitamente mais importante que o iconoclasta genial, apátrida e maldito em que se transformou —, vai encontrá-lo, “…cantando, gritando sua glória, batendo no piano com o cotovelo para acompanhar seus clamores e seus rugidos”.
Uma clínica em Basiléia, uma casa de saúde em Iena e, quando tudo se prepara para coroar de espinhos, nos abismos da loucura, toda uma vida de mártir consagrada à
preparação dessa apoteose pelo avesso, o destino manda cortar a cena e com sua habitual veia irônica profere um veredicto duplo: sobrevivência e sucesso. Duas palavras fracas, talvez, para designar o que acontecerá nos próximos dez e últimos anos do Profeta do Nada: “Estendido numa espreguiçadeira, de tal forma e por tanto tempo imóvel que mais de uma vez os pássaros pousaram em seu corpo”, esse Prometeu, cujo cérebro foi devorado pelos abutres da demência, não poderá perceber que “…suas fórmulas deslumbrantes… puseram em sobressalto um imenso auditório”. “Um imenso auditório”: nada menos que a Europa inteira jaz a seus pés, e quem fala Europa, na virada do século, diz mundo.
Evitando compartilhar do desgastado lugar-comum de “gênio incompreendido, idolatrado post-mortem” Halévy mostra-nos as vias pelas quais Nietzsche se apossa desse papel hoje demodé.

E, na esteira de Fernando Pessoa, descobre que o filósofo, como o poeta, finge fingir a dor que deveras sente. Em suma, a perspectiva aberta por Halévy mostra-nos que em Friedrich Nietzsche, esse Anticristo, o Verbo da filosofia, não menos divino, também se fez carne. Viva. Indo além ou muito além de Schopenhauer, o pai de Zaratustra transforma o pessimismo em niilismo e inaugura uma filosofia pessoal, aparentemente tão contraditória como seu criador (de quem não poderá mais ser dissociada), cuja coerência obedece mais à forma do que ao conteúdo e se expressa, sobretudo, na veemência com que vergasta toda e qualquer crença professada pelos seus contemporâneos.

O livro — pena o título óbvio — goza de todos os méritos que uma boa biografia pode reivindicar: fluência, clima, descrição e cenarização perfeitas, discreta empatia, senso de humor, recriação de época. A breve introdução explica essa rara conjunção de fatores favoráveis; adepto de primeira hora, Halévy é também o primeiro tradutor de Nietzsche e registra, já em 1909, o impacto dessa existência trágica. Cinqüenta anos depois, ao revisar o original com vistas ao preparo de uma nova edição, percebe que o lapso não decorreu sem que a admiração juvenil se transformasse em desejo de exegese; ela justifica um novo livro.
Os Alpes, a Ligúria, Nice, Veneza, Basiléia, Leipzig — convenhamos que a via-crucis de Nietzsche explica perfeitamente a dilação do seu Gólgota. Esse santo ateu errante, com cem quilos de livros nas malas que arrasta masurpialmente, vagabundo da pesada erudição, está sempre, como os pintores impressionistas, em busca da luz exata. Só pode escrever longe dos verões causticantes e ao abrigo dos impiedosos reflexos gelados, que detonam as enxaquecas tornadas tão célebres como os inefáveis bigodes e torturam suas sensíveis retinas.

Cada livro está ligado a uma cidade; Nietzsche parece fecundar e parir a um só tempo, em conluio com sua amada —  a odiada cultura espalhada pelo mais corrupto, decadente e belo dos continentes, gemendo de prazer e urrando de dor à medida que cada livro seu vem à luz com sua carga de amor e violência. Um dos maiores prazeres proporcionados ao leitor de Halévy reside justamente no acompanhamento desses partos, às vezes intermináveis como os de uma ninhada (Considerações Intempestivas, Assim Falou Zaratustra). Cada livro é situado em correspondência exata com etapas dessa viagem perpétua.

Na Universidade de Leipzig, Nietzsche encontra Richard Wagner e torna-se devoto, êmulo e paladino desse gigante musical do romantismo tardio, em cuja honra e sob cuja bandeira escreve seu primeiro livro, A Origem da Tragédia. Em pouco tempo, Wagner vê realizados os próprios sonhos, inclusive o da construção de um teatro-templo para sua música; breve, a mitologia germânica, posta em pauta, invade a Europa com o mesmo êxito das tropas do Kaiser. E Nietzsche, findo o combate, em plena efusão da vitória, deserta…
Titular de uma cátedra prestigiosa, arauto oficial do primeiro músico da Europa, autor de um livro brilhante e polêmico, aclamado por todos como gênio precoce, em menos de dez anos rompe com Wagner, torna-se um autor maldito que não vende, contrai uma doença indiagnosticável  que lhe vale a aposentadoria prematura e outorga-se a impopular função de exterminador das crenças vigentes, Deus e Wagner na mira.

Daí em diante sua existência se passará em pensões e modestos hotéis pagos com a pensão de invalidez e uma pequena renda herdada; poucos amigos conseguem negligenciar-lhe o freqüente mau humor para manter o acesso ao enigmático andarilho em busca da melhor pira para imolar-se. Numa Turim reverenciada por ser o quartelgeneral dessa música suave que preconizava como antídoto para a de seu ex-mentor, a ocasião se apresenta: escreve O Caso Wagner com esse misto de clarividência, lucidez e diatribe cuja receita se perdeu e alcança por fim a paz, não sem antes fotografar-se, mediante livros e poemas, em plena queda livre.

GOLDGRUB, Franklin. Andarilho enigmático em busca da luz exata. O Estado de São Paulo, São Paulo, 03.ago.1989. Caderno 2, p.4
www.franklingoldgrub.com

Psicanálise : íntegra de artigos, aulas, resenhas e programas de estudos escritos e elaborados por Franklin Goldgrub

1111pucFranklin Goldgrub

click :  acesse Psicanálise artigos, aulas…

Sobre o autor

Franklin Goldgrub foi, durante mais de 20 anos, Professor titular do Curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC-SP e psicólogo clínico, com mestrado em Filosofia e doutorado em Lingüística, autor dos livros que constam na seção de livros do site e dos textos  relacionados em “categorias” (artigos, aulas, programas de estudo, resenhas de livros). Torcedor fanático do San Lorenzo de Almagro e admirador de
futebol bem jogado, também escreveu sobre o tema em ‘Futebol: Arte ou Guerra’.
Nascido em 01/09/1943 e falecido no dia 24/06/2015 o professor também foi músico durante
sua juventude, admirado por Caetano Veloso (que cita sua influência no livro ‘Verdades Tropicais’), Sergio Cabral (jornalista e historiador de mpb), Nara Leão (que gravou a música ‘Ana vai embora’, de sua autoria) e outros expoentes da música popular brasileira.
Esse site é seu legado na área de psicologia. Autor e professor incansável, dedicou sua vida
a estudar, produzir e lecionar, alcançando um alto nível de conhecimento e produção.
Reconhecido por suas qualidades junto a alunos, professores e mestres da área, deixou saudades em todos quantos conviveram com ele. O site permite que parte do seu conhecimento seja acessível e compartilhado pelos alunos e todos os interessados na área de psicologia-psicanálise.

A violência perversa no cotidiano

Rev. Estud. Fem. vol.9 no.1 Florianópolis  2001

“Novas” violências assolam o cotidiano

 

Assédio Moral. A violência perversa no cotidiano
HIRIGOYEN, Marie-France.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. 224p.

"A imagem que a autora constrói desse tipo de sujeito é verdadeiramente assustadora. Trata-se de alguém que possui o poder de manipular os outros; alguém capaz de se apropriar da vida de outro: sanguessuga, vampiro. Enfim, um ser maligno, "sem vida própria", que para viver precisa da vitalidade e da energia de um outro, tido como puro, vital, afirmativo, e com uma tendência a culpabilizar-se e sentir-se desvalorizado."

Nesse livro notável, Marie-France mostra como se processa um tipo de violência, que considera perversa, no cotidiano de nossas vidas. Permite-nos observar pelo “olho da fechadura” o estabelecimento e a evolução de relações interpessoais caracterizadas pela violência psicológica em diferentes espaços institucionais.

A autora concentra-se na definição e na análise da violência perversa, ou assédio moral, enfatizando que determinados indivíduos podem exercer sobre os outros uma verdadeira e demolidora estratégia de produção de poder, no sentido da dominação, com o objetivo de eliminar aqueles que foram escolhidos como vítimas. Segundo a autora, essa violência emerge como uma estratégia de poder totalitário, pois a dominação que se pretende implica a destruição/anulação do outro diferente.

A análise desses relacionamentos invoca diferentes espaços sócio-institucionais: no mundo do íntimo, a família; no espaço público, a empresa. Na família, a autora analisa a violência perversa no relacionamento entre pais e filhos e entre os casais; na empresa, focaliza o relacionamento entre chefias e subordinados e entre os colegas. Cada relacionamento é discutido teoricamente a partir de casos clínicos. Em três capítulos — “A violência perversa no cotidiano”, “A relação perversa e seus protagonistas” e “Conseqüências para a vítima e responsabilidade”— Marie-France coloca a nu o que denomina violência privada (na família) e na empresa, analisa as características psicológicas dos protagonistas do drama (o perverso narcísico e sua vítima) e finalmente mostra as conseqüências desse tipo de relacionamento para as vítimas, orientando sobre as estratégias que podem ser utilizadas para se livrar dessa situação.

O poder, como catalisador das relações interpessoais nos diferentes espaços institucionais, não é discutido pela autora; ele é invocado e se faz presente como um eixo da análise, embora não seja suficientemente problematizado. Entretanto o discurso da autora deixa transparecer a presença de um ethos masculino no exercício do poder totalitário nessas instituições, especialmente no espaço familiar, já que seus exemplos clínicos de vítimas da perversão entre casais são sempre mulheres.

Logo na introdução, a autora alerta para o perigo que pode se esconder nos “encontros” com os semelhantes. Qualquer um de nós pode ser interpelado por um outro que poderá desejar nos destruir psicologicamente e quem sabe fisicamente. Como já foi dito, a autora chama esse processo destrutivo de assédio moral. Considera-o uma forma de violência indireta perante a qual a sociedade ainda permanece “cega”. Em função disso, o livro tem o tom forte da denúncia e consegue transmitir, na análise dos protagonistas do drama, um certo maniqueísmo ao apontar a existência na sociedade de indivíduos bons e de indivíduos maus. Há compromisso moral e ético por parte da autora, que sem abandonar a objetividade renuncia à neutralidade, colocando-se explicitamente do lado das vítimas da violência.

A perversão moral que caracterizaria alguns sujeitos é considerada uma patologia. Fica claro que a posse de traços perversos e narcísicos é comum nos indivíduos, tanto quanto comportamentos sintonizados com esses traços são considerados normais em determinadas situações. Mas a perversão moral que distingue o perverso narcísico constitui, segundo a autora, a única forma possível de esse indivíduo se relacionar com o outro.

Uma espécie de predador, animal sedento de sangue, possuidor de uma especial sensibilidade para identificar suas presas, é apresentado como o algoz da relação: o perverso narcísico. A autora reconhece que o termo “perverso” é um tanto perturbador porque tem conotações morais, relativas a metamorfoses do bem em mal, mas aceita essa denominação em função de sua vasta experiência clínica com as vítimas do assédio moral, consideradas pela autora como verdadeiras vítimas, não como cúmplices masoquistas da relação.

Essa visão de uma vítima “realmente existente”, e não de cúmplice da relação, a levará posteriormente a rejeitar todo e qualquer dogmatismo terapêutico, colocando-se do lado do ecletismo na escolha das terapias que podem ajudar a vítima a romper com a relação de dominação.

Explicitamente, a vítima constitui o objetivo de sua reflexão, embora ela dedique um espaço relativamente importante ao algoz da relação, visualizado como a encarnação do próprio mal. A autora descreve os perversos narcísicos como indivíduos possuidores de um certo magnetismo, uma espécie de carisma que os tornaria sedutores aos olhos alheios.

Mas a imagem que a autora constrói desse tipo de sujeito é verdadeiramente assustadora. Trata-se de alguém que possui o poder de manipular os outros; alguém capaz de se apropriar da vida de outro: sanguessuga, vampiro. Enfim, um ser maligno, “sem vida própria”, que para viver precisa da vitalidade e da energia de um outro, tido como puro, vital, afirmativo, e com uma tendência a culpabilizar-se e sentir-se desvalorizado.

Sem ingressar em demasiados detalhes (porque esse não é seu objetivo), a autora admite que o perverso narcísico é alguém que foi negado em sua individualidade, isto é, alguém que foi vitima na infância de um algoz, uma identidade ferida que por não conseguir sentir sua própria dor, inflige sofrimento aos outros.

O personagem Drácula de filme de Coppola, Drácula: Uma historia de amor, evoca essa construção do perverso narcísico, alguém que sofrendo a dor da perda do ser amado (uma relação fundamental) amaldiçoa Deus, metamorfoseando-se num vampiro vingativo e sedento de sangue que vagará pelos tempos fazendo suas vítimas, que consegue atrair porque possui um magnetismo que lhes anula a vontade. O reencontro com sua amada numa outra vida o redimirá de sua maldade, transformando-o num mortal que poderá finalmente descansar em paz. A recuperação do ser amado que evoca uma relação afetiva fundamental o levará à compreensão de sua própria dor.

Assim, tanto o filme de Coppola como o livro de Marie-France relembram que a violência na espécie humana não deriva de instintos animais, “fora de controle”, mas de uma terrível dor recalcada, impossível de ser reconhecida pelo indivíduo, de uma violência que lhe foi infligida e que o levou ao limite de sua própria negação. Drácula vaga pelo abismo da eternidade sem poder conter e sem entender seu ódio pelos outros, que se traduz na necessidade de beber-lhes o sangue/vida, condenando-os por sua vez à imortalidade e à maldade, isto é, trazendo-os a seu próprio “inferno”. Ele se distingue porque, à diferença dos humanos, o espelho não reflete sua imagem, ele é vácuo. O perverso narcísico de Marie-France procura nos outros sua própria imagem; sua dor é um vácuo existencial que não consegue enfrentar.

O mal e a maldade existem, pois, na sociedade, viabilizados por indivíduos perversos que encontrarão sua redenção ou justificação numa história de vida que os fez também alvo da maldade dos outros. Uma cadeia infernal e interminável de “negados”. Mas a autora não se submete às dores dos dráculas do século XXI. Seu alvo serão as vítimas atuais desses relacionamentos.

Para a autora, as vítimas nunca são pessoas frágeis. Muito pelo contrário, não é o déficit do outro que atrai os perversos, mas o inflacionado, as qualidades, o êxito, a beleza, a força, a vitalidade, enfim, o que tem valor positivo na sociedade. A vítima é alguém que pode ser alvo da inveja, que tem algo que o “predador” não possui, mesmo que toda a construção do sentimento que leva à inveja se assente sobre um delírio. Ele investe a vítima de poderes que lhe resultam ameaçadores; não suporta observar o que intui, o que é sua carência, no outro. Mas ele/a não quer possuir as qualidades do outro, simplesmente quer que o outro não as possua, e por isso almeja destruir esse espelho perverso, interpelando no outro aspectos negativos da personalidade. O sentimento que acompanha a inveja nesse caso é o ódio.

A estratégia de poder baseada no exercício da violência psicológica, ou assédio moral, é um processo que começa com uma fase de sedução perversa e que avança a outra de violência manifesta. Sedução, enredamento e controle, ou atração, desestabilização e submissão, são as estratégias violentas empregadas pelos “predadores” para poder destruir finalmente o outro. O prazer do predador é o sofrimento do outro; mas esse outro deve estar à altura, isto é, deve resistir tanto quanto responder às provocações do perverso. A resposta violenta da vítima o enche de regozijo, permite o espelhamento de sua própria maldade.

Talvez a fase mais importante desse processo seja a do enredamento e controle, quando uma verdadeira estratégia de guerra será desenvolvida pelo predador. Ele/a procurará desestabilizar psicologicamente sua vítima para impedi-la de reagir. A forma eficaz para conseguir isso seria a recusa à comunicação. Os não ditos, os silêncios, os gestos, a utilização de outras formas de comunicação que permitem o estabelecimento da ambigüidade, da confusão, serão freqüentes. O objetivo é impedir a reação da vítima, com base na produção de um ambiente confuso, que a leve à incerteza, à insegurança, a dúvidas com relação ao que acontece com o outro e com ela mesma. Deseja que o outro se sinta culpado pela relação, que sinta remorso por suas reações, que serão sempre por ele/a consideradas como “fora de lugar”, exageradas, e assim por diante.

Importante mencionar que a autora coloca a nu um mundo de violências subterrâneas, extremamente trágico, porque geralmente invisível. Uma violência geralmente sem sangue, sem marcas visíveis. Humilhação, desvalorização, agressões veladas, subentendidos, um caminho que conduzirá a vítima a uma crise de identidade e à doença.

Podemo-nos perguntar, entretanto, se essa análise do assedio moral, de seus protagonistas e dos contextos sócio-institucionais não exigiria uma contextualização histórica e cultural mais apropriada. É certo que a autora parece tentar suprir essa carência estabelecendo mediações, que podem ser tidas como insatisfatórias, entre o excesso de individualismo identificado na sociedade atual e o estabelecimento desse tipo de relações, ou talvez mais, a tolerância para com esse tipo de violência, que existe atualmente nas empresas, devido a fenômenos como o desemprego, que geram medo nos trabalhadores e nas trabalhadoras, que por isso se submetem ou se transformam em cúmplices do algoz. Enfim, breves referencias são feitas a aspectos sócio-econômicos, culturais etc. Mas não se constroem mediações entre esses fenômenos psicológicos e o tipo de sociedade que os acompanha. É como se a subjetividade, seja a do algoz, seja a da vítima, não fosse construída num espaço histórico singular. É por isso que a autora não consegue explicar porque, na relação de casais, geralmente as vítimas são as mulheres. Ela não enfrenta o fato gritante de que a perversão narcísica masculina acontece numa sociedade em que prevalecem os valores do machismo, ou mais ainda, em que os machistas se vêem cada vez mais acuados perante a superioridade mostrada pelas mulheres em muitos dos espaços sociais. A negação do outro, o desconhecimento de sua diferença, tem uma base valorativa. No caso dos valores machistas, sua interiorização leva à negação do outro, à desvalorização, à humilhação, a uma espécie de anulação — um comportamento socialmente construído há até pouco tempo bem aceito.

O machista pode ser considerado um perverso narcísico? Ou, o quanto, ou como, os valores machistas reforçam ou possibilitam o surgimento dessa patologia? O quanto os atributos ditos femininos transformam as mulheres em presas fáceis dos perversos? Qual a mediação que existe entre, de um lado, a relação de dominação/poder que os homens estabelecem com as mulheres, e que é social e culturalmente construída, e, de outro, a violência perversa entre casais? Qual a relação entre a emancipação feminina, no sentido da produção de novos valores e atributos, e a violência perversa do homem com relação à mulher?

Outras interrogações se impõem. Há sociedades caracterizadas pela perversão narcísica, isto é, que negam as diferenças individuais, cujas instituições permitem a manipulação, a mentira, que levam a população a confusão, à ambigüidade, impedindo a reação à violência infligida? Há sociedades em que esses processos são mais explícitos, ocorrem com maior freqüência?

Enfim, o livro de Marie-France é fundamental pelos menos por duas razões. Primeiro porque desnuda com maestria o universo quase invisível da violência psicológica nas instituições, num momento histórico em que o incremento de outros tipos de violência na sociedade ocupa a atenção tanto de cientistas quanto de políticos, introduzindo assim uma nova agenda nas discussões. Segundo porque estimula a refletir sobre a violência psicológica nas organizações do mundo do trabalho e sua relação com as novas formas de gestão do trabalho, uma questão da maior importância para os administradores preocupados com a gestão dos recursos humanos nas empresas.

 

ANALÍA SORIA

acesso ao link Scielo

 

 

Corpo e Psicossomática em Winnicott

Vera Regina Ferraz de Laurentiis é psicóloga clínica com formação e mestrado em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
Membro do Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana (IBPW) e do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (Grupo FPP).
Professora do Centro Winnicott de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Campinas e Vale do Paraíba.
Tem artigos publicados em livros e revistas.
Atende em consultório desde 1993.

 

visite o link :   Psicossomática em Winnicott

Centro Winnicott São Paulo fundado em 2001

psicossomatica em winnicott

Psicanalista Frances Didier Anzieu — métodos projetivos, rorschach, psicodrama, o eu – pele, corpo e constituição psiquica

2016-06-26logo-febrapsi-federacao-brasileira-de-psicanalise

 

Didier Anzieu

Veja a biografia de Didier Anzieu em pdf.

(1923 – 1999)

Didier Anzieu nasceu em Melun, França, em 8 de julho de 1923 e morreu em Paris, em 25 de novembro de 1999.

Teve grande atenção de seus pais, sobretudo devido à perda de uma irmã, natimorta, o que contribuiu para um estado de depressão importante de sua mãe. Isto fez com que fosse criado por uma tia materna.

Chegou à psicologia passando primeiramente pela filosofia, tendo estudado com Daniel Lagache na Sorbonne. Sua tese de doutorado abordou a auto-análise de Freud e seu papel na criação da psicanálise.

Em 1949 analisou-se com Jacques Lacan, que por sua vez havia analisado a mãe de Didier e, a partir dessa análise, escrito sua tese de doutorado intitulada De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité (Da psicose paranóica e sua relação com a personalidade). O fato levou à ruptura de Anzieu com Lacan, depois de uma análise que durou quatro bons anos de trabalhos. Em 1953, Anzieu procurou Daniel Lagache como analista. Juliette Boutonier e Georges Favez também fizeram parte do seu treinamento como analista.

Em 1964 contribuiu para a formação da Sociedade Psicanalítica Francesa, tornando-se seu vice-presidente.

Estudou psicanálise, métodos projetivos, psicodrama. Interessou-se pelo teste de Roscharch e por métodos projetivos, nos quais se especializou.

Em 1962, usando as dinâmicas de Lewin em formação de grupos, criou o CEFFRAP – Centre d’études Françaises pour la Formation e la Recherche Active em Pshychologie (Centro de Estudos Franceses para a Formação e Pesquisa Ativa em Psicologia), onde desenvolveu as primeiras pesquisas e experiências em psicanálise de grupo, como também com grupos de psicodrama.

Além de sua brilhante carreira acadêmica, foi editor de sucesso e escritor de crônicas, ensaios e dramas.

Apesar de considerar-se ortodoxo em psicanálise, sempre buscou adequar a interpretação à necessidade do paciente.

Postulava o uso psicanalítico em qualquer situação de tratamento, qual fosse individual, em grupo, com o paciente deitado, sentado, e nos processos de criação.

Tinha como fontes Melanie Klein, Wilfred Bion, Donald Winnicott e Esther Bick.

É o autor do conceito “Eu-pele”, formulado entre 1985 e 1989, por meio do qual postula as experiências iniciais da criança e sua noção de ego, a partir das experiências da superfície do corpo. Este conceito dá origem a pesquisas sobre os “envelopes” corporais, proibição de tocar e transformações patológicas.

Nas palavras de Anzieu: “Posso agora precisar minha concepção do Eu-pele. O círculo materno é assim chamado porque ele ‘circunda’ o bebê com um envelope externo feito de mensagens e que se ajusta com uma certa flexibilidade deixando um espaço disponível ao envelope interno, à superfície do corpo do bebê, lugar e instrumento de emissão de mensagens: ser um Eu é sentir a capacidade de emitir sinais ouvidos pelos outros” (O Eu-pele, 1988).

Didier Anzieu é responsável por uma proposta nova do uso dos métodos para tratar e pensar o corpo, a pintura, a escrita e os grupos.

Bibliografia

  • ANZIEU, Didier. L’autoanalyse. Paris: Presses Universitaires de France, 1959.
  • O Eu –pele (Tradução de Zakie Rizkallah e Rosaly Mahfuz). São Paulo: Casa do Psicólogo, 1988.
  • Beckett and Bion (Juliet Mitchell, Trans.). International Review of Psycho-Analysis, 16 (2), 163-170, 1989.
  • The sound image of the self. International Review of Psycho-Analysis, 6 (1), 23-36, 1979.
  • KAËS, René. Les voies de la psyché, hommage à Didier Anzieu. Paris: Dunod, 1994.

Referências

  • ANZIEU, D. O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1988.
  • http://pt.wikiquote.org/wiki/Didier_Anzieu
  • http://www.google.com.br

Resenha elaborada por Eliane de Andrade, analista didata do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Minas Gerais.

Em que época surgiu a profissão do psicólogo?

 

_20160610_090538

Qual é a origem e em que época surgiu a profissão de psicólogo?

Os primeiros pensadores a se envolver com questões relacionadas à psicologia foram os filósofos gregos clássicos, por volta de 200 anos A.C. Nos séculos seguintes a filosofia ocupou-se dos assuntos “da alma humana”. Apenas com as transformações na racionalidade (a forma de pensar e representar a realidade) pós iluminismo, a partir da “revolução científica” dos séculos XVIII e XIX, com a definição de novos campos de saber, criaram-se condições para o surgimento de uma ciência psicológica. Outros fatores que contribuíram foram a crescente preocupação com os enganos da razão (que substitui gradativamente as crenças religiosas na tentativa de compreensão da realidade) e a construção da idéia de “indivíduo” (própria às necessidades do capitalismo que estava se consolidando.

Como marco simbólico, tem-se 1879, ano em que foi criado um laboratório de pesquisas em psicofísica na Alemanha.

No Brasil a psicologia teve dois caminhos de entrada: no início do século XX pelos cursos de formação de professores e de pedagogia; alguns anos mais tarde pela “psicologia industrial”, como a maior industrialização dos centros urbanos.

Os primeiros cursos de formação específica em psicologia datam da década de 1.950. Em 1.962 a profissão foi regulamentada por lei federal você pode conhecê-la acessando o site www.pol.org.br do Conselho Federal de Psicologia. Neste site você também terá maiores informações sobre a ciência e a profissão em psicologia.