Nietzche uma biografia

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ANDARILHO ENIGMÁTICO EM BUSCA DA LUZ EXATA
Com rigor, fluência e contextualização perfeita, discreta empatia e senso de humor, Daniel Halévy compõe uma envolvente biografia de Friedrich Nietzche, o santo ateu.
(“Sim, sei de onde venho/ lnsaciável como a chama/ Brilho e me devoro/ Luz, tudo que toco/ Carvão, tudo que deixo”…Ecce Homo).

Eis o homem que morreu duas vezes, como fogo e como brasa, depois de ter percorrido em estado de incandescência a longa travessia que leva das últimas ilusões da era da razão até a terra arrasada do século XX.

Para responder a essa pergunta não menos insaciável – afinal de contas, quem foi Friedrich Wilhelm Nietzsche – Daniel Halévy refaz a rota desde o berço até sua primeira morte, ocorrida em Turim, janeiro de 1889.

É lá que Overbeck, protótipo do amigo fiel — e para quem o homem Nietzsche é infinitamente mais importante que o iconoclasta genial, apátrida e maldito em que se transformou —, vai encontrá-lo, “…cantando, gritando sua glória, batendo no piano com o cotovelo para acompanhar seus clamores e seus rugidos”.
Uma clínica em Basiléia, uma casa de saúde em Iena e, quando tudo se prepara para coroar de espinhos, nos abismos da loucura, toda uma vida de mártir consagrada à
preparação dessa apoteose pelo avesso, o destino manda cortar a cena e com sua habitual veia irônica profere um veredicto duplo: sobrevivência e sucesso. Duas palavras fracas, talvez, para designar o que acontecerá nos próximos dez e últimos anos do Profeta do Nada: “Estendido numa espreguiçadeira, de tal forma e por tanto tempo imóvel que mais de uma vez os pássaros pousaram em seu corpo”, esse Prometeu, cujo cérebro foi devorado pelos abutres da demência, não poderá perceber que “…suas fórmulas deslumbrantes… puseram em sobressalto um imenso auditório”. “Um imenso auditório”: nada menos que a Europa inteira jaz a seus pés, e quem fala Europa, na virada do século, diz mundo.
Evitando compartilhar do desgastado lugar-comum de “gênio incompreendido, idolatrado post-mortem” Halévy mostra-nos as vias pelas quais Nietzsche se apossa desse papel hoje demodé.

E, na esteira de Fernando Pessoa, descobre que o filósofo, como o poeta, finge fingir a dor que deveras sente. Em suma, a perspectiva aberta por Halévy mostra-nos que em Friedrich Nietzsche, esse Anticristo, o Verbo da filosofia, não menos divino, também se fez carne. Viva. Indo além ou muito além de Schopenhauer, o pai de Zaratustra transforma o pessimismo em niilismo e inaugura uma filosofia pessoal, aparentemente tão contraditória como seu criador (de quem não poderá mais ser dissociada), cuja coerência obedece mais à forma do que ao conteúdo e se expressa, sobretudo, na veemência com que vergasta toda e qualquer crença professada pelos seus contemporâneos.

O livro — pena o título óbvio — goza de todos os méritos que uma boa biografia pode reivindicar: fluência, clima, descrição e cenarização perfeitas, discreta empatia, senso de humor, recriação de época. A breve introdução explica essa rara conjunção de fatores favoráveis; adepto de primeira hora, Halévy é também o primeiro tradutor de Nietzsche e registra, já em 1909, o impacto dessa existência trágica. Cinqüenta anos depois, ao revisar o original com vistas ao preparo de uma nova edição, percebe que o lapso não decorreu sem que a admiração juvenil se transformasse em desejo de exegese; ela justifica um novo livro.
Os Alpes, a Ligúria, Nice, Veneza, Basiléia, Leipzig — convenhamos que a via-crucis de Nietzsche explica perfeitamente a dilação do seu Gólgota. Esse santo ateu errante, com cem quilos de livros nas malas que arrasta masurpialmente, vagabundo da pesada erudição, está sempre, como os pintores impressionistas, em busca da luz exata. Só pode escrever longe dos verões causticantes e ao abrigo dos impiedosos reflexos gelados, que detonam as enxaquecas tornadas tão célebres como os inefáveis bigodes e torturam suas sensíveis retinas.

Cada livro está ligado a uma cidade; Nietzsche parece fecundar e parir a um só tempo, em conluio com sua amada —  a odiada cultura espalhada pelo mais corrupto, decadente e belo dos continentes, gemendo de prazer e urrando de dor à medida que cada livro seu vem à luz com sua carga de amor e violência. Um dos maiores prazeres proporcionados ao leitor de Halévy reside justamente no acompanhamento desses partos, às vezes intermináveis como os de uma ninhada (Considerações Intempestivas, Assim Falou Zaratustra). Cada livro é situado em correspondência exata com etapas dessa viagem perpétua.

Na Universidade de Leipzig, Nietzsche encontra Richard Wagner e torna-se devoto, êmulo e paladino desse gigante musical do romantismo tardio, em cuja honra e sob cuja bandeira escreve seu primeiro livro, A Origem da Tragédia. Em pouco tempo, Wagner vê realizados os próprios sonhos, inclusive o da construção de um teatro-templo para sua música; breve, a mitologia germânica, posta em pauta, invade a Europa com o mesmo êxito das tropas do Kaiser. E Nietzsche, findo o combate, em plena efusão da vitória, deserta…
Titular de uma cátedra prestigiosa, arauto oficial do primeiro músico da Europa, autor de um livro brilhante e polêmico, aclamado por todos como gênio precoce, em menos de dez anos rompe com Wagner, torna-se um autor maldito que não vende, contrai uma doença indiagnosticável  que lhe vale a aposentadoria prematura e outorga-se a impopular função de exterminador das crenças vigentes, Deus e Wagner na mira.

Daí em diante sua existência se passará em pensões e modestos hotéis pagos com a pensão de invalidez e uma pequena renda herdada; poucos amigos conseguem negligenciar-lhe o freqüente mau humor para manter o acesso ao enigmático andarilho em busca da melhor pira para imolar-se. Numa Turim reverenciada por ser o quartelgeneral dessa música suave que preconizava como antídoto para a de seu ex-mentor, a ocasião se apresenta: escreve O Caso Wagner com esse misto de clarividência, lucidez e diatribe cuja receita se perdeu e alcança por fim a paz, não sem antes fotografar-se, mediante livros e poemas, em plena queda livre.

GOLDGRUB, Franklin. Andarilho enigmático em busca da luz exata. O Estado de São Paulo, São Paulo, 03.ago.1989. Caderno 2, p.4
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